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QUATRO CAMINHOS PARA A PRESENÇA

FC

Troca / Pausa / Consciência / Aceitação

Busco neste artigo entender melhor a questão do “estar presente”, ideia que recentemente tenho me deparado muito e me parece ser uma boa chave para entender melhor a Fotografia Contemplativa. 

Se partirmos do princípio que fotografar é apreciar, explorar e conhecer o mundo, ou seja, contemplar, podemos concluir que algo essencial (e até óbvio) na fotografia é a presença, afinal não se pode contemplar sem estar realmente presente. E mais do que estar presente, creio que não se pode contemplar o mundo sem ter com este uma relação de presença, em oposição a uma relação de utilidade. 

Acredito que entender melhor o conceito de relação de presença pode nos ajudar até mesmo a propor um estilo de vida unindo mindfulness e fotografia, como meios de ver e interagir como o mundo ao nosso redor (ampliação da esfera de presença do ser - Gallian).

Em autores como Martin Buber e Cartier-Bresson, assim como na essência da Fotografia Contemplativa e do Mindfulness vislumbramos quatro caminhos para a presença, caminhos complementares, que vamos explorar a seguir.  

1. Presença é TROCA

Para Buber, filósofo e pedagogo da primeira metade do séc. XX, só estamos presentes de fato quando estamos em uma relação (Eu-Tu), e isto ele também chama de contemplação. Se estamos em busca de algo, dominar, consumir, nomear, estamos em uma experiência do ISSO, da coisa (Eu-Isso), o que cria uma decomposição que torna tudo objeto (Buber, p.45).

A relação de presença, definida por Buber, é mais do que apenas presença, pois é uma relação de encontro, de comunicação com o outro. Essa relação de presença não é o que fica, mas o que é, “não é algo fugaz e passageiro, mas o que aguarda e permanece diante de nós”, é uma relação com o essencial, não com as objetividades ou vontades de consumir e absorver (Buber, p.33). Há, para ele, uma grande diferença entre olhar (ou ver normal) e contemplar. Olhar é querer, contemplar é ser. 

Podemos ver sem estar realmente presentes, mas esta será uma busca por utilidade, por meios de resolver outras coisas. Querer ter é fonte de estresse, enquanto SER pode ser fonte de qualidade de vida. 

Entretanto, ao estabelecermos uma relação de presença com algo ou o meio ao nosso redor, temos mais que olhar, temos contemplação e podemos estabelecer comunicação e alcançar este outro. Há portanto uma grande diferença entre o “ver” e “contemplar” de Buber, que combina muito bem com as idéias da Fotografia Contemplativa e do Mindfulness. 

2. Presença é PAUSA

Bom, se fotografar é apreciar, contemplar, expandir nosso mundo, podemos entender o que disse Cartier-Bresson sobre como a fotografia surgiu para ele quando começou a perceber que ao olhar melhor pelo visor da câmera, seu “pequeno mundo se ampliava” (p.15). Para ele a câmera não é um limitador, não faz recortes, mas torna-se um instrumento que amplia nosso olhar, nos permite descobrir o mundo, o mundo nos forma e nós influímos nele.(p.29). “Nossa tarefa consiste em em observar a realidade com a ajuda deste bloco de esboços que é a nossa máquina fotográfica, e fixá-la…” (p.19). 

Fotografar é como uma pausa, um momento em que o presente se expande:

“Fotografar é prender a respiração quando todas as nossas faculdades se conjugam diante da realidade fugidia; é neste momento que a captura da imagem é uma grande alegria física e intelectual. [...] Fotografar é pôr na mesma linha de mira a cabeça, o olho e o coração. (Cartier-Bresson, p.11)

Acredito que para ele a cabeça seja a razão, memórias, angústias, desejos, esse mundo de coisas que habitam nossa mente, nossa ligação com o passado; o olho seja a percepção, a contemplação, nossa âncora no presente; e o coração seja nosso ser, nossos sentimentos e esperanças mais profundos, uma ligação com o futuro. 

Para Cartier-Bresson, a fotografia (e tomo a liberdade de acrescentar, a fotografia da presença) [...] é uma maneira de gritar, de libertar se, não de provar nem de afirmar sua própria originalidade. É uma maneira de viver.” (Cartier-Bresson, p.11-12).

Portanto a ampliação, resultado da presença e objetivo da fotografia (para ele), só acontece no momento da pausa, de sair da correria e utilidade do cotidiano e apenas ser. A pausa é a verdadeira presença, é o momento de estar, de ser. 

Parece contraditório falar de pausa como caminho, mas se pensarmos que estamos sempre buscando algo e quase não encontramos nada, parar para encontrar parece uma grande ideia. 

3. Presença é CONSCIÊNCIA 

Ao falar de mindfulness podemos estar nos referindo a um estado psicológico, a um traço de personalidade ou a um programa de treinamento. Mas sempre nos referimos a um estar atento, a estar no momento presente, com consciência e escolha. Mindfulness é “um estado ou traço que se refere a capacidade de estar atento ao que acontece no presente, com abertura e aceitação” (Demarzo e Capayo, p.20). 

Mindfulness, para mim, tem sido acima de tudo a busca por entender e praticar a presença. É uma ideia simples mas um grande desafio. Em mindfulness aprendemos a nos conhecer e não nos apegar aos pensamentos, desejos, mas parar e observar melhor o presente, aliviando a mente de um grande estresse mas também descobrindo um mundo rico do presente, antes oculto pela névoa da mente que divaga entre passado e futuro, na verdade lugares ilusórios. 

Mindfulness é estar presente, mas com consciência e intencionalidade. 

4. Presença é ACEITAÇÃO

A Fotografia Contemplativa pode ser entendida como um estado mental aberto, curioso, sem julgamento, concentrado em apenas ver. Antes de uma técnica de fotografia é uma forma de ver o mundo e de viver. É a experiência visual direta, não conceitual, ou seja, a pura percepção. É uma prática ligada à meditação que, buscando ver a realidade sem pré-conceitos, fórmulas, definições, ansiedades, objetivos, apenas ver, visa trazer nossa visão para o presente, para o dia-a-dia, para o real, abrindo nossos olhos e permitindo ver o “novo” no cotidiano, ver beleza e criar arte.

A partir da reflexão de Buber começo a entender esta prática como essa relação de presença, pois não é uma busca por algo, mas sim uma relação de estar, de ser junto, mas junto de quê? Do que nos rodeia, objetos e pessoas, ambos como “Tu”, e isso nos leva a descobertas imprevistas e por isso mesmo mais ricas. Assim contemplar é acima de tudo se relacionar, trocar e aceitar a troca possível. Aceitação é estar presente. 

Conclusão - presença como estilo de vida

Viver mais em relação de presença e menos em relação de utilidade. Essa é nossa conclusão e também uma proposta.

A vivência das humanidades, ou seja, literatura, artes, filosofia, etc, é um caminho para a “ampliação da esfera de presença do ser” (Gallian, Pondé e Ruiz), para sermos mais e lidarmos melhor com a realidade que nos cerca. Essa experiência, através do Laboratório de Humanidades, foi meu tema de pesquisa anteriormente (BITTAR 2013). E acredito que a fotografia, como parte das humanidades, tem grande potencial para esse objetivo, ou seja, de ampliar a presença, e esse é o tema de minha pesquisa atual. 

Acredito que um “estilo de vida” de presença, de comunicação aberta e não-julgadora, de contemplação, nos ajuda a nos libertar das necessidades de coisificar, de viver uma experiência apenas utilitarista e estressante. 

Encontramos quatro caminhos, o de TROCA, o da PAUSA, o da CONSCIÊNCIA e o de ACEITAÇÃO. Devem haver muitos outros, mas acredito que refletir sobre estes, e tentar praticá-los, já deve ser muito impactante. Cada um desses caminhos, ou uma mistura deles, talvez possa nos ajudar a ampliar nossa presença, a viver melhor o momento presente, diminuindo o estresse de ter, aumentando a possibilidade de SER e assim ter mais qualidade de presença. 

Apesar de estar chamando de “caminhos” é importante frisar que são sobretudo formas de “deixar vir”, de diminuir a pressão que nós mesmos criamos de buscar, e começar a receber. Nas verdade não há caminho, vivemos apenas, apenas ao olharmos para trás podemos ver o que parece caminho. A vida não é busca, e sim presença. Como disse o grande poeta sevilhano Antonio Machado:

Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace el camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.

[Extracto de Proverbios y cantares (XXIX)]

Foto: jan/2018, feita com o celular, descobrindo uma flor comum num dia de chuva. 

(publicado em 09/01/2017)

Referências:

BITTAR, Y.; SOUSA, M.S.A.; GALLIAN, D.M.C. Esthetic experiencing of literature as a means for humanization of healthcare: the Humanities Laboratory at São Paulo Medical School, Federal University of São Paulo. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.17, n.44, p.171-86, jan./mar. 2013.

BUBER, Martin. Eu e Tu. Editora Moraes, São Paulo, 1974. Tradução de Newton Aquiles Von Zuben.

CARTIER-BRESSON, Henri. O Imaginário Segundo A Natureza. Barcelona, Editora GG, 2004. Trad. Renato Aguiar

DEMARZO, Marcelo & GARCÍA-CAMPAYO, Javier. Manual Prático de Mindfulness: Curiosidade e Aceitação. Editora Palas Athena, 2015.

GALLIAN, D.M.C., PONDÉ, L.F., RUIZ, R.. Humanização, Humanismos E Humanidades: Problematizando Conceitos e Práticas no Contexto da Saúde no Brasil. Revista Internacional de Humanidades Médicas Volumen 1, Número 1, 2012. Disponível em http://www2.unifesp.br/centros/cehfi/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=107:revista-internacional-de-humanidades-medicas&catid=30:artigos-em-periodicos&Itemid=10

KARR, Andy e WOOD, Michael. The Practice of Contemplative Photography: Seeing the World with Fresh Eyes. Shambhala Publications, Boston, 2011.

 

Yuri

Sobre o autor: Yuri Bittar

Yuri Bittar é designer, fotógrafo e historiador. Atua como designer gráfico, e desenvolve cursos de fotografia, exposições e as saídas Fotocultura, além de pesquisas sobre humanização no ensino da saúde. Através da história oral, da fotografia, da literatura e outros recursos, tem buscado criar projetos mais próximos ao humano e que contribuam para a melhora da qualidade de vida.

Contato: yuribittar@gmail.com

Site pessoal: http://www.yuribittar.com

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