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Uma poética dos movimentos invisíveis Yuri Bittar
A poética dos movimentos invisíveis, a melodia do silencio ensurdecedor, retratos silenciosos do barulho interior. Sobre como a contradição humana é espaço, presença e vida. Resumo Este artigo traça o caminho de uma fotografia de rua, relaciona esta a uma prática contemplativa, ao conceito de percepção, do punctum de Barthes, e busca entender como uma fotografia pode contribuir para a ideia de criar um espaço de presença e vida como apresentado por Ferracini. Na relação entre o “barulho” interior de cada pessoa e o “silêncio” de uma foto, entre o visto e o invisível, existe uma possibilidade de presença, de criação de um espaço de relação entre corpos, de vida. Propomos encarar a fotografia como uma poética dos movimentos invisíveis, uma criação conjunta de diferentes corpos, e oportunidade para, em aula, criar um espaço com potencial de presença e vida. Um caminho até aqui O texto (Presença e Vida. Corpos em arte) e o vídeo (Corpo Coletivo: presença radical nos tempos atuais) de Renato Ferracini, ao falarem de teatro, presença e corpo, vieram ao encontro a uma reflexão que já me preocupava, dentro da fotografia. Além disso nestes mesmo dias encontrei em meus arquivos uma foto, de minha autoria, que também contribuiu, ou complicou, essa questão. E a questão é a presença, o que numa foto nos liga a ela, nos leva para dentro dela. E é esta foto que apresento para esta discussão. Tenho uma série de fotografias em andamento intitulada “Retratos silenciosos do barulho interior”. Nessas fotos tento dar plasticidade a percepção de que apesar de uma aparência por vezes silenciosa, trazemos dentro de nós muito “barulho”. Ou seja, busco retratar como a “casca exterior”, tão bem captada pela fotografia, pode ocultar, e certamente oculta, um ruído, movimento, desencaixe, talvez resultado de uma tentativa de nos adaptar a padrões retilíneos, negando que por dentro somos um redemoinho difuso e impreciso. Corpos em relação: Fotografia como percepção Antes de falar da foto que trazemos para discutir, precisamos esclarecer que, ao fotografar nas ruas, podemos ter basicamente duas atitudes, dois olhares: A) Forma conceitual: sair e procurar o que queremos, buscar boas imagens, preocupados com o resultado, com o “like” ou com a venda; B) Forma perceptual: estar presentes e descobrir o que houver - ou viver o momento, fruindo, conhecendo, registrando, deixando o depois para depois. Resumindo mais, podemos sair para achar o que queremos, ou estar para descobrir o que houver. A diferença é que essa segunda forma de olhar, muito ligada às práticas contemplativas, pressupõe uma presença, consciência, e permite vivenciar o momento. Talvez esse “mundo” captado pela percepção possa ser essa “grande composição aberta a outras composições” mencionada por Ferracini. Mas voltaremos a isso. Não que não seja possível na forma conceitual, mas é menos provável. Retratos silenciosos do barulho interior A foto que trago para pensarmos é de 2018, feita em Lisboa. Nesta viagem trabalhei com outra série, outro tema, que resultou até em um livro (Sombras de Paz e Solidão), mas esse sentimento sobre o “barulho interior”, agora percebo, já estava em mim, pois ao rever as fotos agora percebi os “Retratos silenciosos do barulho interior” em muitas fotos, mas na época não tinha a “chave” para percebê-las. Esta é uma fotografia noturna, tirada com o celular, há nela a beleza das luzes de neon refletidas no calçamento português, mas o mais especial é olhar da garota:
São belos olhos grandes e amendoados, e o branco se destaca, esse é o visível na foto. Mas o invisível se apresenta como perguntas: ela estaria pensativa? Preocupada? Admirando a paisagem? Me encantei com esse olhar mas não por sua beleza, mas pela possibilidade de presença que eles suscitam, pela janela que esse olhar abre para imaginarmos o “barulho interior”. Não sabemos que barulho estava dentro dela, mas não duvidamos que existia. Encontro de presenças e potência da vida Aqui está a oportunidade de pensar a presença. Ao sair para a rua, para fotografar, com a percepção ativada, sem esperar nada específico, mas abertos à experiência do momento, podemos nos sintonizar ao ritmo da cidade, ouvir sua poesia, e de certa forma refletir, nas fotos feitas, algo do mundo e algo nosso. Podemos nos abrir para uma relação com outros corpos (pessoas, arquitetura...) e permitir a intensidade da vida, compor, com eles, um poema de movimentos silenciosos. Renato Ferracini diz, sobre vida e presença, que a “ vida é pensada como uma força inventiva composicional e presença é experimentada como uma relação concreta entre corpos que em sua tensão de encontro gera maior ou menor intensidade.” (Ferrancini, 2013, p. 4) E se ao encarar o registro da vida, na fotografia, como um poema feito em conjunto, saíssemos do papel de fotógrafo-autor para o de co-criadores? Que potência isso gera? A fotografia pode proporcionar esse espaço. Os movimentos visíveis, como o passo de alguém, ou o carro ou uma casa, são fáceis de captar. Mas nos movimentos quase invisíveis, sugeridos por detalhes, pelo punctum (Barthes, 1984), o detalhe da foto que nos prende, nos atinge, nos atrai para uma reflexão mais profunda, que para outros pode ser despercebido, mas para quem sentiu essa “cutucada” da foto passa a ser o centro da imagem, nos permitem estar presentes. Para mim, nessa foto, esse punctum é o olhar da garota, que de certa forma é uma contradição, o diferente, outra pessoa, mas é também o que permite criar um espaço, uma presença, que é imaginada, mas também concreta se fazemos uma pausa para ver e para discutir a foto em grupo. Conclusão: Uma poética dos movimentos invisíveis como caminho de presença Um olhar, ou um gesto, ou um detalhe qualquer, enquanto punctum, e completados por nosso próprio olhar, criando poética nos movimentos que só existem no encontro entre corpos, do fotógrafo, do local e pessoas fotografados e de quem vê a foto, gera potência de presença. No olhar da “rapariga”, meu punctum, surge uma conexão, um encontro poético, um movimento invisível. Imagino que especialmente a área da saúde poderia usufruir desse “compartilhamento de experiências poéticas coletivas” (Ferracini, 2013, p.1), um encontro, um movimento invisível, não só para exercitar a própria humanidade, mas para ampliar o olhar para novas formas de visualizar a realidade. Referências |
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